em ruína

Um, dois, três…
Alcanço os pedaços de vidro e mancho a parede com o sangue, sentindo a sua textura na ponta das minhas unhas.
Não creio que o sangue seja meu, mas de alguma forma veio parar às minhas mãos. Estas que alcançam os meus ouvidos e procuram abafar o ruído, banhando a minha face em falsa inocência. Será que se eu gritasse, alguém escutaria as minhas preces?
Naquela casa de papel, as marcas e o barulho sempre passaram despercebidos entre sorrisos de falsa esperança , desejando que um dia os mais próximos se apercebessem e viessem em nosso resgate. Eles colhem aquilo que semeiam, deviam pensar.
Eu estou a colher a infância que não fora protegida, pois entre ternura e violência, batidas e passos são o suficiente para fazer o meu corpo estremecer. A minha ansiedade tornara-se uma mera fragilidade, invocada somente para não tolerar a repressão do silêncio e sufocar-me quando o barulho atinge as grandes escalas, visto que isso na minha cabeça só poderia significar duas coisas: redenção ou morte.
Quando um punho perfura a porta daquele quarto, começo a divagar e a desejar que a minha fé seja o suficiente para invocar o nosso salvador, que, passado horas, não chega para vir limpar as minhas lágrimas. Começo a pensar que talvez a minha religião nunca tenha sido realmente minha, enquanto continuo a contar os pedaços partidos deixados pelo chão, outro copo é quebrado e em criança assisto, em adolescente protesto e em mulher lamento.
[Assisto, enquanto duas almas se corrompem e dão origem ao seu próprio abismo, não se apercebendo que consomem toda a energia positiva que alguma vez ousou existir.
Protesto, no momento em que o meu pensamento adquire racionalidade e atribui-me a opção de revolução em tão tamanha indignação, permitindo-me ganhar voz e corpo, sensibilidade e medo.
Lamento, pelas pessoas que acreditam que o amor é um sentimento prisioneiro, transmitindo esse balanço entre dominação e submissão para as futuras gerações.]
Um, dois, três e... silêncio.
Parei de contar os pedaços há muito tempo atrás.
O monitor dos sinais de vida apresenta uma linha contínua e o bater de asas de uma borboleta atinge-me com a sua tempestade final. Porém ainda estou acordada, e quando encaro as minhas mãos em várias tonalidades de vermelho, apercebo-me da pele seca que se recusa a ser limpa.
Envolvo-as instintivamente à volta do meu pescoço e aperto, aguardando o meu último suspiro. Esta será para sempre a minha ruína.


- "Crianças expostas à violência doméstica estão em situação de risco devido a uma série de problemas psicossociais, mesmo quando não são o alvo da agressão física. Esses problemas são semelhantes àqueles observados em crianças que sofrem abuso físico, o que sugere que qualquer tipo de violência na família pode prejudicar o desenvolvimento da criança." (https://www.enciclopedia-crianca.com/maus-tratos-na-infancia/segundo-especialistas/violencia-domestica-e-seu-impacto-sobre-o).

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