perdi as chaves de casa
Estamos rodeados de arte, produto do sonho do pensador.
Na mesa de cabeceira um ruído melódico escapa do dispositivo móvel. A minha mão ergue-se de forma automática com o propósito de desligá-lo, pois ser acordada por uma influência exterior, ao invés do próprio consciente, não me alegra o espírito. Porém, este acaba por ser o momento que identifica o começo do meu dia, assim como o embate de um objeto no chão que resultou do meu descuido pelo reposicionar do meu braço. Levo as mãos ao rosto, procurando mentalizar-me da realidade que me rodeia. Pego nos óculos e coloco o Livro do Desassossego de volta ao local de onde caíra.
''Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente''.
Levanto-me e dirijo-me à janela, onde Artemis já me aguarda sentada, com os seus olhos abertos e orelhas ao alto, atenta a cada movimento. Afasto as cortinas e abro-a, deixando a luz varrer o escuridão enquanto a gata começa a observar os seres vivos e o esvoaçar das folhas. Eu começo a observar as cores e afago o seu pelo carinhosamente. De seguida, deixo-a aproveitar o seu momento preferido do dia e encho-lhe a tigela com comida, sorrindo-lhe de despedida.
Encaminho-me ao armário e apercebo-me que a minha desordem organizada se mantém, obrigando-me a escolher as primeiras peças de roupa que me surgem à frente e mentalizando-me que num futuro próximo tenho de abraçar as minhas responsabilidades e, consequentemente, seguir a ordem da idade adulta. Ignoro o problema por agora, coloco os auscultadores nos meus ouvidos e permito que a música encubra o mundo exterior, impedindo-me de ouvir o ecoar do tacão na madeira, ao que fecho a porta de casa. Luís Severo compõe a melodia e os meus pés somente lhe acompanham ao ritmo de Acácia.
''Na sala o medo já solta a guitarrada / E o coração sobe e desce / É só o ar que se vai / Que sede louca te despe a memória? / Que voz te conta metade da história?''
Percorro a rua em compasso e sigo à direita com o intuito de virar a esquina e encontrar-me com o meu local habitual, onde maior parte do meu tempo é passado. O letreiro balança como um cumprimento saudoso à minha presença e eu dirijo-me à entrada que me acolhe com o cheiro de pão com manteiga acabado de sair e café acabado de ser transformado a partir do seu grão. Sento-me e recebo o pedido sem nem ter de o anunciar.
Geralmente deleito-me em sentar-me nos cantos que decoram os espaços, pois permitem-me visualizar o mundo em panorâmico, mas também escondem-me de olhares curiosos. Com uma torrada na minha mão esquerda e uma caneta na minha mão direita, escrevo no meu caderno que ocupa uma pequena parte da mesa; dou um gole no galão e observo: um dos empregados enfeita a loja com a decoração de Natal que fez em casa na noite anterior, um homem preenche os espaços vazios do jornal que comprou à vinda e uma idosa encara o anel na sua mão com ternura, enquanto a envolve na sua chávena para a aquecer.
Escrevo como eles estão mergulhados em arte, alheios a esse facto devido à rotina.
O som do movimento é um abrigo momentâneo para o meu coração agitado, gosto do silêncio, mas também gosto de sentir a vida a acontecer ao meu redor; sinto-me privilegiada por poder viver este momento em paz, não desmerecendo os meus problemas, só reconhecendo a natureza apocalíptica do ser humano. Largo a caneta, dou outro gole, desvio a minha atenção para o monitor pelos quais muitos passam e não olham com olhos de ver. As fontes de comunicação ilustram a guerra, sensibilizam o público para a fragilidade da vida e retratam-nos, através de pequenas letras após um destaque apelativo, as grandes proporções da catástrofe.
''GUERRA AO MINUTO'', um conjunto de palavras que criaram todo um tópico de pesquisa que permanece nestes últimos anos em jornais e redes de informação. Oh, como este galão já não me desce pela garganta com o mesmo sabor, mereço eu esta calmaria enquanto outros sofrem em mãos cruéis?...
Levanto-me em peso e dirijo-me à saída, repentinamente soturna, com a maldição de pensar em demasia atado aos meus cordões, seguindo-me a cada passo mal dado. Sinto-me como apenas mais um peão de um sistema baseado em ignorância, mas a vida continua, e a mudança terá eventualmente que nos arrebatar.
Começo a seguir por um caminho diferente de volta para casa e acabo por me dar conta da arte que adorna a persistência minimalista atual. Pinceladas em tons vibrantes dão voz a mensagens poderosas de lutas contínuas, representando sonhos em junção com a criatividade jovem. As paredes, antes meros blocos silenciosos, erguem-se agora como manifestos visuais, testemunhos de quem ousou transformar a cidade em tela. E à medida que avanço, sinto o ar a mudar e, por instantes, é como se a cidade respirasse comigo em cor.
"Para os desenhos da imaginação é preciso ter um assunto muito, muito forte para que consiga sair. Não é uma coisa que aconteça todos os dias. Tem que ser realmente com muita intenção e muita força. Quando a gente está a desenhar do modelo, há sempre a linha, o desenho segue porque se está a olhar. Mas quando a gente está a olhar para dentro, vê cá os bonecos e põe no papel dessa maneira."
Eventualmente, a minha visão recai para as minhas botas e na forma como estas se contrastam entre a calçada portuguesa. Talvez por questão de compulsão, talvez pela criança que habita no meu interior, começo a alternar entre o calcário branco e preto, percorrendo o caminho por uma cor e direção só. Dos pés da população do século XIX até aos que a mim me pertencem, história é vivenciada.
Desisto da ideia a meio, aproximo-me do prédio e pego na minha máquina fotográfica, captando a Artemis à minha espera na janela e mostrando-lhe o resultado ao longe, ''És tu''. Vasculho a minha bolsa cegamente com a única mão livre e vou de encontro à porta. Não escuto o tilintar do metal e, então, por uma questão de segundos, os meus pés finalmente assentam em terra: perdi as chaves de casa.
Emergimo-nos na arte e moldamo-nos através dela, até que nos esquecemos da cabeça pelo caminho.
- como é complexo ser humano; um rascunho de dois mil e vinte e dois
Comentários
Enviar um comentário