uma escritora no escuro

Pela movimentação urbana, o vento vagueia de forma ameaçadora até chegar a seu encontro.
Muitos corpos colidem desmazeladamente contra o seu, procurando abrigo mediante toda a precipitação que os rodeia em volta da paragem. Estão apressados, preocupados com o trabalho para onde se irão atrasar, com os familiares que os aguardam em casa, com o horário a cumprir, com os amigos por ver, enquanto ela espera. Já ela parece taciturna, não sabendo distinguir se trouxera consigo o guarda-chuva ou se simplesmente o deixou ser levado pela corrente, apenas deixando-se permanecer no seu lugar, enfrentando voluntariamente a fúria do tempo presente. Do lugar onde se encontra, consegue facilmente captar o som dos comboios e das conversações paralelas, os quais parecem atormentá-la por serem altos demais, fazendo-a encolher-se e encarar fixamente o local onde o seu transporte deveria estar a atravessar neste preciso momento. Não quer olhar para trás.
As suas mãos estão trêmulas, escondidas algures nos bolsos do seu casaco, enquanto a sua respiração acelera. A sua consciência acaba de entrar naquilo que seria o seu retorno à decadência, mas ninguém repara.
Ninguém sabe.
Um suspiro alto escapa pelos seus lábios quando, após os seus bolsos serem remexidos incontáveis vezes, sangue começa a escorrer pelo seu dedo, contrastando o pequeno corte produzido pelo pequeno pedaço de alumínio agora em sua mão. A sensação é indolor mediante toda a aflição envolvente, logo a sua atenção volta-se meramente para a substância que é rapidamente retirada e colocada debaixo da sua língua, como se a sua vida dependesse disso. E depende.
Ela lamenta-se por nunca ter sido boa como ele.
No seu campo de visão, duas luzes são identificadas aumentando em gradação na sua direção, enquanto um eco vindo dos carris anuncia uma chegada iminente. Aguarda, enquanto duas portas se abrem, dando espaço para a saída dos passageiros, e só depois mergulha na confusão de cabeça baixa, dirigindo-se para a última carruagem com o propósito de sentar-se sozinha. Coloca a mochila no seu colo e retira o seu caderno, onde, em momentos como este, com o seu corpo atordoado e mente dispersa, recorre para permitir o seu caráter melodramático escorrer pela tinta e impregnar as páginas de um preto denso. Um preto tão escuro que jamais conseguiria ser apagado.
Então uma gota cai, duas caiem, a página é manchada. 
Ela não sabe distinguir se a água que agora escorre pela folha de papel é prevalente da chuva ou de lágrimas que decidiram abundar os seus olhos sem qualquer aviso prévio.
Tenta limpar, uma tarefa sem sucesso, algo que a leva a parar a fim de fechar os olhos por um momento enquanto sente a substância desfazendo-se na sua boca, abrandando o ritmo acelerado do seu coração, porém não atenuando os seus pensamentos contínuos. Pensamentos estes que sempre encontram caminho em direção à sua fragilidade. Ele.
Com as suas mãos frias, voz etérea, presença sublime e detentor do brilho nos olhos dela. Estas são as noções que o tempo vai roubando lentamente para fora do seu alcance.
Ele deve se arrepender do dia em que beijou uma escritora no escuro. Agora ela vai escrever, imortalizá-lo e trancá-lo no seu coração. Vivendo nos seus rascunhos, bêbado nas suas próprias palavras.
Em momentos como este, quando a sua mente remete à sua aparição nas mais indesejáveis alturas, por vezes deseja voltar ao passado, onde os problemas pareciam desaparecer e o mundo parecia pequeno diante dos seus pés, até ao momento em que se beijavam de despedida. Pequenos gestos que despontavam o mais radiante sorriso no seu rosto. 
Todavia, com o passar dos meses, ela apercebeu-se de que a sua felicidade não dependia somente dessas pequenas passagens.
Ela ergue a sua postura e limpa as lágrimas com a manga do seu casaco. Observa através da janela a paisagem dissipar-se em pequenos milésimos de segundo e decide tentar conceber a sua melhor tentativa de um esboço a partir da mancha recente, enaltecendo o negrume e metamorfoseando-o. Demonstrando a faceta bela da melancolia.
Paralisa quando a tinta escura lhe traz à memória tempos em que a solidão a envolvera, dentro de um abraço acolhedor, prometendo-lhe companhia. Companhia essa que drenara tudo aquilo que em si restava, comprimindo o abraço e asfixiando-a, roubando o pouco oxigénio que lhe restava. Ela delirara, aprisionando-se no seu passado e no seu futuro, como maneira de se esconder do presente, que lhe escapulia por entre os dedos.
Agita a cabeça, como se negando a essas recordações, pega na caneta e faz com que ela percorra a folha de papel amarelada, procurando representar a cidade e a urbanização, a vida em movimento. No centro. um vulto preto, que se destaca dos outros rabiscos mal pormenorizados. Na sua própria companhia.
Foi assim que ela percebeu que poderia ser salva.
Poderia ser salva, mas não por alguém, somente por si mesma.
Então ela amou.
Amou cada ínfimo detalhe daquilo que o mundo lhe proporcionou, o bom e o mau, até finalmente começar a sentir os braços que a asfixiavam, desprenderem-se. Estava livre.
Uma voz anuncia o seu destino e ela guarda as suas coisas, pegando na sua mochila, levantando-se e pedindo desculpa quando embate em algumas figuras desconhecidas, em direção à saída. As portas abrem-se e ela desce. 
Pelo caminho a chuva cai na sua pele, no seu rosto, nos seus braços, na sua alma. Ela desliza por todo o seu corpo até finalmente alcançar o solo, levando consigo todas as impurezas do seu ser. Ela olha para o céu sorrindo e ergue os seus braços. Ajoelha-se.
Parece que muita coisa mudou.
Ela anda de comboio, lê as placas e deixa as estações mudarem a sua mente. Ela semeia o perdão por todos os sítios onde passa, até nas memórias que a ele lhe pertencem.
Ela encontrará maneira de ficar sem ele, seu amor.

E eu, desorientada no chão do meu quarto e com o caderno a meus pés, deparo-me submersa no meu próprio vazio.
Seguindo a sua sombra ao longe.


- perspetiva acerca de writer in the dark por lorde (onde crio uma história a partir da sua letra)

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